Introdução
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“Desejaria, como Ricoeur1 diz também, «reabrir o passado para reavivar nele as potencialidades não cumpridas, impedidas, ou mesmo massacradas», particularmente aquelas que a proclamação do Evangelho reclama sempre que é ritualmente anunciado. Desejaria que as minhas explorações do passado não fossem viagens a um reino de sombras, nem mistificação de factos pretensamente privilegiados, mas revelação do que sempre de novo existe no passado, do que sempre de novo o traz até nós, do que sempre de novo nos impulsiona no presente, do que sempre de novo deveríamos transmitir a quem vier depois. Desejaria…” (Mattoso, 2009, p. 8)
Ao trabalhar a memória (ou memórias) sinto, de cada vez, um reenvio “à vida, para que assim eu me prolongue e partilhe, para que a vida seja mais forte que a morte” (Caldas, 2008, p. 83), esta constante fuga para o não esquecimento marca todas as gerações humanas, claramente negando a fonte de Olvido2 , porque ao partilhar memórias tornamos o mundo menos voltado ao egoísmo, estéril de tolerância e à rejeição do progresso social e cultural, que só por si podem garantir, num mundo global, as liberdades e garantias pelas diferenças e identidades.
Memória do objecto: Manter e preservar a identidade de uma comunidade, étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar.
Hoje, a museologia é feita com património concreto, material e imaterial, não sendo, então, o objecto o mais importante por si mesmo, mas sim, as memórias captadas a partir desses mesmos objectos, como nos lembra Alfredo Tinoco. Assim, a preocupação com os objectos é legítima, porque preserva memórias inerentes a si. No entanto, o museu tem uma inquestionável acção social premente, daí a sua iminente interdisciplinaridade que pressupõe, sem dúvida, a estreita colaboração de técnicos da área da conservação e restauro, que pela sua experiência e conhecimentos, podem também contribuir para que os objectos museológicos materiais não sejam um fim, mas antes, um meio de alcançar a linguagem poética de memórias que encerram, trabalhando-a no sentido de comunicar com o público dos espaços museológicos essa mensagem de contemporaneidade de que venho a tratar.
Na museologia, o património a conservar não é uma imensidão de objectos – artefactos – homogéneos e independentes entre si, pelo contrário, são um conjunto de artefactos heterogéneos e interligados e que constituem a representação histórica de ambientes a que deixamos de ter um contacto directo. Devem, por certo, possuir um grau de significação e de coerência, que nos leve a reconstituições ou exposições de ‘coisas perdidas ou ameaçadas, mas cujo tratamento esteja imbuído de rigor cientifico.
Os objectos que perderam o seu uso original interessam-nos e, por isso, conservamo-los em museus, muitas vezes de forma isolada, mas que mantêm uma relação quotidiana com o público e as colectividades. Assim, quando os visitamos devemos estar conscientes de qual a intenção ao fazê-lo para que, inevitavelmente, se estabeleça uma relação comunicativa entre o sujeito e o objecto. Estes, tratados pelos técnicos da conservação e restauro, são instrumentos mágicos e servem ao ser humano na dominação da natureza e no desenvolvimento das relações sociais. Seria erróneo, contudo, explicar a origem dos artefactos exclusivamente por esse único elemento, pois por vezes são bem complexos os quadros de relações que se estabelecem. A atracção das coisas brilhantes, luminosas, resplandecentes e a irresistível atracção da luz podem ter desempenhado também o seu papel no aparecimento dos mesmos. A atracção sexual, as cores vivas, os cheiros fortes, as palavras e os gestos de sedução, tudo isso pode ter funcionado como estímulo.
“Os ritmos da natureza inorgânica, o bater do coração, a respiração, as relações sexuais, a recorrência rítmica de processos ou elementos de forma, o prazer daí derivado – e em último lugar mas não com menos importância, os ritmos do trabalho – podem todos ter desempenhado um papel importante. O movimento rítmico apoia o trabalho, coordena o esforço e liga o indivíduo ao grupo, ao social.” Fischer3 .
A complexidade de definição do conceito de objecto museológico advém do facto de o património ter sido, durante muito tempo, tratado como um conceito quase metafísico, quando se trata fundamentalmente de um fenómeno orgânico e mensurável.
As actividades artísticas e estéticas são resultado de determinantes sócio – culturais aprendidos, conservados ou transformados pelos indivíduos. Acompanhando a vida e as trajectórias das suas elaborações artísticas ou actividades quotidianas, observa-se que eles não são seres ‘a–sociais’ ou ‘a–históricos’. Mas, o facto é que, o não são somente executar, produzir, realizar, e o simples “fazer”, não basta para definir a sua essência, pois também são invenção e natureza. Eles não são execução de qualquer coisa já idealizada, realização de um projecto, produção segundo regras dadas ou predispostas. São um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer! A materialidade é necessária à Humanidade.
Poderemos dizer que o Museu viverá da eterna luta do ser humano, no cumprir de um destino feito na constante dialéctica entre o entrelaçar de fios com que se integra e o desatar de nós com que se liberta. Isto é, através do Museu, o homem cumpre o seu destino de ser errante, num constante vai e vem entre o ‘Eu’ e o ‘Nós’, o parcial e o total, o imanente e o transcendente, o horrível e o belo, entre as amarras e a libertação, uma viagem de vai e vem, onde aqui e ali tropeça na realidade e mais além se agarra à fantasia, uma viagem cujo farol é o sonho e fim último, a plenitude. Daí, que o Museu seja necessário para que o ser humano se torne capaz de conhecer, mas, sobretudo, mudar o mundo.
[1] Paul Ricoeur é um dos mais importantes filósofos da segunda metade do século XX. Estabeleceu uma ligação entre a fenomenologia e a análise contemporânea da linguagem através da teoria da metáfora, do mito e do modelo científico.
[2] Na mitologia grega os mortos deviam beber da fonte de Olvido, para perder a memória do passado, antes de alcançar uma nova vida.
[3] Sociólogo.