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“Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”
Heráclito de Éfeso1
Este exercício permitirá, no espaço físico ou virtual, arquitectónico ou natural, de um qualquer museu, compreender a dimensão da viagem duma “comunidade de indivíduos para se recordarem, ou fazer recordar a outras gerações pessoas, acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças.” (Choay, Alegoria do Património, 2008, p. 17)
Parafraseando Sophia de Mello B. Andresen2 , “Ia e vinha / e a cada coisa perguntava / que nome tinha” (Andresen, Coral, 1950/2003, p. 47). Assim, cabe ao museólogo/conservador entender os próprios objectivos como emissor de uma mensagem definida a ser descodificada pelo público receptor, entendendo que o contexto deve centrar-se na especificidade do seu projecto compreendido no modelo global de sociedade hoje previsto.
No entanto, e também devido a esta exigência, não se coloca actualmente o problema de uma isenção, de uma total imparcialidade do técnico porque só pela emoção se pode dar a desfrutar uma ‘memória viva’ do passado, do presente e do futuro, estando estes três tempos em constante ligação e meio de produção de uma leitura cultural. Utilizando um termo de Françoise Choay, é imperioso “excitar” (Choay, Alegoria do Património, 2008, p. 17) a memória pela emoção e desta forma alcançar o que considero sublime na prática museóloga, uma consistente leitura do passado, poética ou lírica, uma interpretação do presente, escutando uma ‘melodia dos sentidos’, e uma projecção do futuro, pautada por um discernimento ancestral e contado ao segundo.
Desta ininterrupta mutação do tempo, das interrogações inerentes a este estado de Humanidade, do cruzar de experiências, e de uma busca permanente da memória, a humanidade desprende-se das fobias próprias do ser pensante e atravessa desmedidamente os limites do saber, de forma nada inocente, preparando-se para o tempo futuro, sendo este não a morte, mas a realidade imortal do conhecimento.
Nada melhor para ilustrar esta minha posição do que a epopeia de Gilgamesh, sendo o mais antigo texto literário escrito pelo homem3 , significando "o velho que rejuvenesce", rei da Suméria4 e fundador da cidade de Uruk5 , ano de 2700 a.C. Sendo 2/3 divino e 1/3 humano, filho da deusa Ninsun6 e do sacerdote Lugalbanda7 , germinou uma lenda que o tornou no protagonista da maior aventura pela imortalidade – memória - e pelo conhecimento, "Quero ao país dar a conhecer aquele que tudo viu, que conheceu os mares, que soube todas as coisas, que analisou o conjunto de todos os mistérios, Gilgamesh, o sábio universal que conheceu todas as coisas: ele viu as coisas secretas, trouxe o que estava escondido, e transmitiu-nos o saber mais antigo que o Dilúvio" (Gilgamesh, 2003-2008). “Quando os deuses criaram o homem atribuíram-lhe a Morte; mas a Vida, essa ficou para eles” (Tamen, 2000, p. 58). O que buscamos nós num cemitério de lápides e jazigos?
Gilgamesh, "Aquele que descobriu a origem", "Aquele que viu tudo", Gilgamesh confrontado com a angústia da morte, procurou Uta-Napishtim8 para conhecer o segredo da sua imortalidade por este ter sobrevivido ao dilúvio e recebido o dom da imortalidade pelos deuses. Com esse objectivo de viagem até ao conhecimento, encetou uma peregrinação pelo imaginário, por uma mesopotâmia museal, que bem poderia ter sido um dos pergaminhos semi-abertos de Kleio9 , ‘Musa Proclamadora’, levando-o por entre perigos e coragens, aventuras e receios, tal como hoje o museólogo, até encontrar aquele a quem os deuses concederam o dom da imortalidade que lhe diz ser a morte uma realidade incontornável!
Importa agora esclarecer que ao ter falado em inocência anteriormente, ela deve ser entendida como uma evolução natural, “Não há inocentes; só aqueles que ainda não nasceram ou os que já estão mortos podem aspirar à inocência” (Dagerman, Inocência). Voltamos a Gilgamesh, e entendamos o momento em que Enkidu10 , seu amigo, ao beber a sabedoria pela cortesã, é desprovido da sua inocência e rejeitado pelos animais selvagens, tendo de ir para a cidade, onde trava combate com o rei e não havendo vitorioso, passam a comungar de uma amizade heróica!
No entanto, como sabemos, a morte apresenta-se a Gilgamesh, sendo a origem para a grande caminhada até ao conhecimento supremo, aquele que vence o esquecimento… No encontro com Uta-Napishtim, este desafia-o a buscar a planta no fundo do oceano cujos espinhos devolvem a juventude, logo que a achou, perdeu-a para uma cobra! Assim, Gilgamesh voltou para a sua cidade e disse, “Sobe à muralha de Uruk, inspecciona o terraço das fundações e examina bem os tijolos; vê como são tijolos cozidos; não terão sido os sete sábios que assentaram estas fundações?” (Tamen, 2000, p. 74).
“Tudo isto era também obra de Gilgamesh, o rei, que conheceu os países do mundo. Ele era sábio, viu os mistérios e conheceu as coisas secretas; transmitiu-nos uma história dos dias antes do Dilúvio. Fez uma longa viagem, conheceu o cansaço, esgotou-se em trabalhos e, ao regressar, gravou numa pedra toda a história” (Tamen, 2000, p. 75)
Hoje, na prática museóloga, bebendo um pouco desta epopeia – tão-só ilustradora da realidade -, devemo-nos orientar pelos seguintes princípios:
• Institucionalização da memória social
• Respeito à diferença, num mundo global
• Participação das comunidades
E acrescentarmos um ‘sisífico’11 «work in progress»12 , ou seja, trabalhar numa permanente busca, onde o conhecimento vai sendo construído. O Museu interioriza, como um ente, um enorme número de conceitos, não se limitando à apresentação de objectos, à pedagogia ou à conservação, ampliando o seu campo de vivência com grandes potencialidades socioculturais, granjeando o valor social que vem a reivindicar nas últimas décadas. Aceitando uma filosofia gnóstica na museologia, esta ‘visão de águia’ ou hipervisão permite a interdisciplinaridade que poderá servir de ponte para as margens amplas do quotidiano.
Por exemplo:
“A Literatura, a História e a Geografia convocam um projecto artístico que as transfere para o território de uma narrativa «pós-science fiction», onde a utopia se converte numa atopia, o presente revela-se uma estranha arqueologia do futuro, o museu preserva, apresenta e classifica as imagens de seres mecânicos para ele exclusivamente criados, a vegetação artificial agita-se em função da presença do espectador, o qual é confrontado com a manifestação de vestígios de uma ou varias estórias, de um ou vários contextos, suportes, linguagens, estímulos sensoriais ou cognitivos” (Leal, 2003).
A prática gnóstica da museologia é autobiográfica. Esta minha perspectiva prende-se, sem dúvida, às minhas crenças desde a infância e, com toda a certeza, do meu percurso de vida, desde os primeiros passos na alfabetização num colégio de freiras – Congregação S. José de Cluny – que recordo com carinho, desde os corredores com imagens de Cristo, da capela com uma grandiosidade extraordinária, da gruta da Imaculada Conceição, onde me refugiava à hora da sesta e me perdia por entre pedras, heras e caracóis, e sempre aquele olhar doce da imagem que tudo admirava. Depois, a capela da minha aldeia, dedicada a S. Mamede, que anunciava os dias longos aquando dos terços após o jantar durante o mês de Maio. Mais tarde, nos escuteiros, cujos encontros eram na antiga casa – Casa Museu – de José Luciano de Castro13 , Anadia, com a sua capelinha, e o acervo deslumbrante: dois painéis de retábulo, intitulados de S. Jerónimo e de Santa Helena, a imagem de Santa Ana em madeira estofada e policromada do século XVIII, o retábulo de São Gonçalo de Amarante, e um crucifixo em marfim indo-português, tudo a ‘excitar’ as emoções infanto-juvenis. E, assim, surgem as minhas explicações do mundo que vão pautando os meus tempos de vida!
[1] Filósofo pré-socrático e criador do princípio universal lógico. Este espírito arrojado pronunciou pela primeira vez esta palavra profunda: "O ser não é mais que o não-ser", nem é menos; ou ser e nada são o mesmo, a essência é mudança. O verdadeiro é apenas como a unidade dos opostos; nos eleatas, temos apenas o entendimento abstracto, isto é, apenas o ser é. Dizemos, em vez da expressão de Heráclito: O absoluto é a unidade do ser e do não-ser. Se ouvimos aquela frase "O ser não é mais que o não-ser", desta maneira, não parece, então, produzir muito sentido, apenas destruição universal, ausência de pensamento. Temos, porém, ainda uma outra expressão que aponta mais exactamente o sentido do princípio. Pois Heráclito diz: "Tudo flui (panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo".
[2] “Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca durma, que nunca me esqueça.” Sophia poetisa portuguesa (1919-2004) que se ergue como a voz da liberdade, buscando o mistério poético, numa viagem permanente às memórias.
[3] Redigido em sumério, por volta do fim do terceiro milénio antes de Cristo, e gravada em placas de argila, com caracteres cuneiformes
[4]A Suméria (ou Shumeria, ou Shinar; na bíblia, Sinar; egípcio Sangar; ki-en-gir na língua nativa), geralmente considerada a civilização mais antiga da Humanidade, localizava-se na parte sul da Mesopotâmia (apesar disto os proto-sumérios surgiram no Norte da Mesopotâmia, no actual Curdistão, tal como não eram originalmente semitas, mas sim invadidos por eles via sul proto-árabe), apropriadamente posicionada em terrenos conhecidos pela sua fertilidade, entre os rios Tigre e Eufrates.
[5]Uruk (em sumério, Unug; o Erech bíblico; e o árabe Warka) foi uma cidade antiga da Suméria – posterior Babilónia – situada a leste do Eufrates, na linha do antigo canal Nil, numa região pantanosa, a cerca de 225 Km su-sudeste de Bagdá. O próprio nome moderno Iraque é derivado de Uruk, que terá sido uma das mais antigas e importantes cidades da Babilónia. Dizia-se que suas muralhas haviam sido construídas por ordem de Gilgamesh.
[6] Na mitologia Suméria, Ninsun ou Ninsuna ("senhora vaca selvagem") é uma deusa, mais conhecida como a mãe do lendário herói Gilgamesh, e como a deusa da Tutelares Gudea de Lagash
[7]Segundo a lista Suméria, o rei Lugalbanda foi o terceiro rei de Uruk e pai de Gilgamesh; diz a lenda que a sua esposa foi Ninsun.
[8]Traduzido geralmente como “ele que viu a vida”, sobrevivente com a sua família da inundação Suméria e chamado “a semente de todas as criaturas vivas”, significando que “encontrou a vida” - ou a imortalidade -, tendo semelhanças com o Noé do Génesis na Bíblia.
[9] Musa representada com o pergaminho parcialmente aberto, Musa da História.
[10]É uma figura central na Epopéia de Gilgamesh, In the story he is a wild-man raised by animals and ignorant of human society until he is bedded by the Shamhat .na história ele é um homem selvagem e ignorante da sociedade humana até ser humanizado pela ShamhatThe loss of Enkidu inspires Gilgamesh's quest to escape death in the remainder of the narrative. .
[11] Os deuses condenaram Sísifo a incessantemente rolar uma rocha até o topo de uma montanha, de onde a pedra cairia novamente devido ao seu próprio peso, assim, pensaram que não haveria punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. Daqui o temo.
[12] Tradução livre: Trabalho em desenvolvimento.
[13] O Museu de José Luciano de Castro, criado em 1997, está instalado no Palacete Seabra de Castro, edifício de meados do século XIX, que serviu de residência ao estadista; hoje, sede da Santa Casa da Misericórdia de Anadia. O Museu é dedicado à figura de José Luciano de Castro Pereira Corte Real (1834-1914), eminente estadista português que desempenhou o cargo de presidente do Conselho de Ministros, durante o período do Rotativismo, na última fase da Monarquia Portuguesa.